Uma panaceia chamada acompanhamento psicológico: a psicologização do sofrimento nas políticas públicas
- Lucas Delfin
- há 3 dias
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A inserção da Psicologia nas políticas públicas tem se ampliado significativamente nas últimas décadas. Hoje, é comum encontrar psicólogos e psicólogas atuando na saúde, na assistência social e, mais recentemente, na educação, com expectativa de expansão nos próximos anos, devido a marcos legais recentes.
Essa ampliação, no entanto, não veio acompanhada da devida compreensão — nem por parte dos próprios profissionais, nem por gestores, colegas de equipe ou usuários — sobre quais são, afinal, os contornos e possibilidades da atuação psicológica nesses contextos.
Para quem está começando, são frequentes as dúvidas: “O que se espera de mim nesse serviço?”, “Como faço Psicologia aqui?”. Para os usuários e demais trabalhadores da rede, essas perguntas se transformam em expectativas, muitas vezes ancoradas em uma ideia estreita da Psicologia como sinônimo de escuta individual e resolutiva. Assim, o encaminhamento para o psicólogo se torna uma resposta automática a todo tipo de sofrimento, como se ele carregasse um repertório mágico de soluções.
A panaceia da psicologização
O acompanhamento psicológico, nesse cenário, passa a ocupar o lugar de uma panaceia institucionalizada: um recurso genérico, disponível para qualquer desconforto que não encontre resposta clara nas condições de vida. Diante de realidades marcadas por múltiplas formas de vulnerabilidade e desproteção, o gesto mais comum é encaminhar “para conversar com o psicólogo”.
Mas quando o sofrimento é estrutural — atravessado por violência de gênero, racial e institucional, por ausência de renda, por negligência do Estado, por vínculos familiares fragilizados por anos de exclusão — o deslocamento do problema para o campo da subjetividade corre o risco de produzir uma grave distorção.
Transformar em questão psíquica aquilo que é também, ou sobretudo, uma questão política e institucional é um equívoco ético. Mais do que inócuo, esse deslocamento pode operar como uma forma sutil de responsabilização da própria pessoa por aquilo que ela vive. Uma mãe que “não consegue dar conta dos filhos” pode estar tentando sobreviver com três crianças em um cômodo alugado, sem creche, sem rede de apoio, sem transporte acessível. Encaminhá-la para “fazer terapia” sem interrogar essas condições é, no mínimo, incompleto. Em muitos casos, é injusto.

Chamamos de psicologização os processos através dos quais dificuldades, problemas ou sofrimentos de caráter social, político, familiar, cultural e/ou institucional são reduzidos a questões psicológicas individuais, clamando-se, assim, por intervenções igualmente psicológicas e individuais.
Em todos os casos, encaminhamentos dessa natureza devem ser ponderados a partir da interdimensionalidade da situação-problema, articulados cuidadosamente com o órgão a receber tal encaminhamento — por meio de contato entre profissionais e/ou relatório qualificado e devidamente contextualizado —, discutidos com a pessoa e aceitos por ela.
A consideração última deve recair sobre os reais benefícios potenciais de determinado encaminhamento versus os sacrifícios e investimentos exigidos das pessoas para participar das ações propostas, que frequentemente envolvem logística intrafamiliar, custos com deslocamento e ausências no trabalho. Muitas vezes, encaminhamentos e acompanhamentos irrefletidos se convertem em oneração e carga adicional sobre indivíduos e famílias.
Talvez fira o exercício de poder velado de certos profissionais a constatação de que, em muitos casos, articulações e elaboração de estratégias conjuntas de cuidado são mais efetivas do que atendimentos fragmentados entre os diversos serviços que atendem a mesma pessoa ou família.
Qual o lugar do sofrimento?
Embora haja, definitivamente, situações que demandam atendimento ou acompanhamento psicológico, tais encaminhamentos legítimos costumam estar embaralhados em meio a outros tantos que parecem dizer: “é aqui que você deve levar seu sofrimento”. Tal viés busca eximir outros serviços e profissionais da dimensão humana da relação de prestação de serviço — seja na escola, no CRAS ou em qualquer outro ponto da rede.
A incompetência (no sentido brando e constatativo da palavra), pessoal e técnica de profissionais e agentes públicos para escutar, acolher e lidar com o sofrimento implica na ideia de que existem formas e locais adequados para tal sofrimento se manifestar, bem como profissionais específicos para receber e manejar estas expressões.
Se, por um lado, é inegável que o arcabouço técnico e ético da Psicologia favorece uma escuta mais qualificada a determinados fenômenos e formas de sofrimento, é também flagrante como, de forma geral, agentes públicos se mostram despreparados para se relacionar com pessoas nos diferentes contextos em que atuam. Ora, se competências de comunicação, escuta e relação interpessoal são necessárias para a execução adequada do trabalho sensível — e sempre imanente — que se dá ao nos relacionarmos com o público dos nossos serviços, gestores deveriam estruturar programas permanentes de desenvolvimento pessoal e profissional para trabalhadores e trabalhadoras das tantas políticas públicas que lidam cotidianamente com pessoas e seus problemas.
Desnecessário dizer que essa ainda é uma realidade distante de se tornar regra nas administrações municipais.
Neste sentido, convém compartilhar que, em minha experiência, as contribuições de Carl Rogers e Marshall Rosenberg têm se mostrado valiosas em processos de formação e capacitação sobre comunicação, escuta e atendimento a pessoas em diferentes cenários.
Entre a escuta e a denúncia
A Psicologia, nos serviços públicos, pode e deve ser lugar de escuta qualificada, de acolhimento, de cuidado. Mas também precisa ser campo de análise crítica e de posicionamento ético-político. Atuar com responsabilidade exige reconhecer que nem toda demanda que chega deve ser automaticamente traduzida em atendimento psicológico individual. Algumas precisam ser transformadas em denúncias técnicas, em incidência institucional, em articulação com a rede.
Há momentos em que nosso melhor gesto clínico é o gesto político: sustentar que não se trata de um caso de saúde mental, mas de ausência de direitos. Dizer que a escuta não é suficiente quando não há alimento, moradia, proteção.
Esse discernimento — que nem sempre é simples ou evidente — precisa ser cultivado com apoio técnico, formação continuada e espaços de supervisão que permitam aos profissionais refletirem sobre as formas como se produzem as demandas e sobre as armadilhas que o próprio campo nos apresenta.
Deslocar a prática, sustentar a implicação
Nos últimos anos, tenho acompanhado colegas de profissão em seus desafios cotidianos nos serviços da Assistência Social, da Saúde e da Educação. A sensação de impotência, o excesso de demandas, a desarticulação das redes, a fragilidade institucional — tudo isso nos atravessa. Mas também nos atravessa a possibilidade de criar práticas que não recuem diante da complexidade.
Se você, profissional de Psicologia, tem se deparado com essas inquietações, saiba que elas não são apenas suas. E que existem formas de transformá-las em potência de análise e de intervenção. Tenho desenvolvido propostas de supervisão e acompanhamento técnico que buscam justamente qualificar esse campo de atuação, sem cair na armadilha de simplificar ou romantizar a prática.
Caso queira compartilhar suas experiências ou construir reflexões em conjunto, fico à disposição para esse diálogo. Visite a página de Supervisão em Psicologia e Políticas Públicas no site da Kairós Psicologia ou me envie uma mensagem para saber mais.
O trabalho nas políticas públicas compreende um movimento duplo: desenvolver repertório individual, coletivo e institucional para lidar da melhor forma possível com as demandas que competem a cada serviço ou política, ao mesmo tempo em que devem ser empregados esforços na produção de novas demandas — tanto das populações atendidas como de outros componentes das redes —, criando novas práticas psicológicas alinhadas às necessidades reais das pessoas, famílias e povos.
Neste sentido, convém uma reflexão advinda da clínica psicanalítica: toda queixa mascara uma demanda. E o atendimento deve ser às demandas, e não às queixas.
Adotar uma postura institucional proativa, e não reativa, parece ser um caminho para comportar as reais necessidades e engendrar um trabalho efetivo, amplo e estruturado.
Para o bem e para o mal, por mais resoluções, orientações técnicas e normativas que existam, o trabalho da Psicologia não está dado a priori, mas deve ser construído no cotidiano.